quarta-feira, 17 de agosto de 2011

DA PAISAGEM AOS PALIMPSESTOS REGIONAIS: REFLEXÕES SOBRE CONCEITOS GEOGRÁFICOS ELEMENTARES

Prof. MSc. Luiz Jorge Dias
Geógrafo - Mestre em Sustentabilidade de Ecossistemas

Dentro dos estudos de caráter geográfico, muitas são as formas de um iniciante se inserir nas interpretações dos elementos espaciais, compreendendo formas, arranjos, disposições de objetos e ações sobre locais os mais diversos, com a finalidade de se reconhecer a formação de territórios, bem como de suas dinâmicas intrínsecas e, obviamente, extrínsecas. Essas interpretações podem ser feitas a partir de análises procedidas pela Geografia Física e/ou pela Geografia Humana, que, freqüentemente, levam a explicações tendenciosas, não condizentes com a realidade dos fenômenos apresentados.

Destarte, convém-nos aportar para uma perspectiva mais transversal, incorporando dados e informações tanto físicas, quanto humanas, sem esquecer que existem aspectos de natureza geocológica que necessitam ser levados a cabo, sem envolvê-los dentro do cabedal dos elementos físicos.

Portanto, para se acabar com as tendências teórico-metodológicas dicotômicas da Geografia, é mister se destacar o papel integracionista que essa ciência possui epistemologicamente. Isso proporciona, pela lógica, uma exigência profissional urgente ao geógrafo: fazer associações, inter-relações e integrações multivariadas para a compreensão de paisagens, espaços e territórios e suas características genéticas, evolutivas, processuais, com atributos analíticos advindos tanto das ciências naturais (Física, Química, Astronomia, Oceanografia, Geologia, Meteorologia, Hidrologia, dentre outras), quanto das ciências biológicas (Biologia e Ecologia, por exemplo) e das humanas (Antropologia, Sociologia, Economia, Filosofia, Ciências Políticas, Direito, Demografia, etc.) na tentativa de composição duma análise mais verticalizada e transdisciplinar dos objetivos de estudos geográficos.

Paisagem, espaço, território e espaço total

Nesse sentido, destacam-se conceitos básicos, reformulados pela experiência e voltados para a prática profissional. Dentre eles, o que mais se destaca em termos expositivos é o termo paisagem, que configura, grosso modo, tudo aquilo (elementos, objetos e ações físicos, ecológicos e humanos) que se possa abarcar com a visão, obviamente de forma empírica. Daí se conclui que ao olharmos uma praia ou uma feira, isso se transforma numa paisagem, pontual, mas dotada de atributos que nos proporcionam identificar o que está por trás das aparências, naquele instante observado, bem como nos proporciona especular sobre possíveis relações e processos, além de materiais e recursos os mais diversos envolvidos na sua constituição. Conclui-se, pois, que observar a paisagem é o ponto de partida para a compreensão dos objetivos analíticos da Geografia.

Um segundo (e não menos importante) conceito refere-se ao espaço, que possui várias conotações, dependendo de qual ciência o utiliza. No nosso caso, no campo das pesquisas geográficas, espaço é a junção de elementos (objetos) e ações específicas, que mostram dinâmicas (ou dialéticas) diversas, em que se enquadram as utilizações das paisagens pelas sociedades (ou pelo homem, como eventualmente se diz), a transformação de elementos físicos (abióticos) e ecológicos (bióticos) em recursos ambientais para a subsistência humana[1], bem como as relações que os componentes de uma sociedade (ou de sociedades diferentes) estabelecem entre si. Numa visão “clássica”, esse conceito quer compreender os processos interativos homem – meio – homem.

No entanto, esse espaço é compreendido de forma bem abrangente. Diríamos, até, sem limites distintos, uma vez que, tudo o que mostra aquelas citadas relações e mesmo associações entre o homem e o meio se insere nos seus quesitos epistêmicos, o que impossibilita o seu gerenciamento, o tratamento político e operacional de seus componentes, o que passa a ser possível quando se imprimem traçados, geralmente invisíveis, sobre o espaço original, configurando delimitações (fronteiras, em sentido geopolítico). Esse, pois, é o quesito fundamental para compreensão do terceiro termo, território, que se aporta, lato sensu, a todo e qualquer porção espacial delimitada ou passível de delimitações. Isso pode ser feito ao nível imaginário, como no caso de fronteiras intermunicipais, interestaduais, ou mesmo internacionais, visto apenas em linhas projetadas em cartas ou mapas políticos e temáticos (dependendo da abordagem a que estes últimos se destinam), ou mesmo, numa perspectiva restrita, por obstáculos físicos, reais, como as cercas, os muros, rios, lagos, oceanos, formações florestais, limites de áreas urbanizadas, dentre muitos outros.

Resumindo, todo território precisa da existência ulterior de espaços e estes, de paisagens. A concatenação dos elementos que os compõem formam o que se ousa chamar de espaço total (AB’SÁBER, 2004), que deve ser visto com uma visão inter e transdisciplinar, haja vista a exigência de reconhecê-lo mediante a elaboração de Avaliações de Impactos Ambientais e de suas heterogêneas vertentes legais e metodológicas (EIA-RIMA’s, PCA’s, Zoneamentos Ecológico-econômicos, Avaliações Ecológicas Rápidas, etc.), bem como isso proporciona uma boa situação do geógrafo frente a profissionais de outras áreas/formações. Outrossim, volta-se ao início desta explanação, pois esse conceito diz respeito ao conhecimento integral da Geografia, ao enlaçar interpretações físicas, ecológicas e humanas de um lócus pesquisado.

A esse respeito, Ab’Sáber (2004, p.98) tem uma reflexão interessante, ao destacar que

[...] há algum tempo, porém, o vocábulo [espaço total] tem sido utilizado para um fragmento do território regional que pode ser visto no contexto do presente, como resultado de uma longa elaboração histórica. Foi nessa condição que o conceito foi introduzido entre nós pelo saudoso Milton Santos. Mesmo assim foi pouco, porque todo espaço regional é fruto de uma história geológica, geomorfológica, pedológica e hidrológica, modificada por sucessivas formas de atividades antrópicas, às vezes bastante perturbadoras [...]

Esse pensamento nos transfere para uma outra reflexão: os estudos geográficos devem levar em consideração heterogêneas abordagens temporais. Em outros termos, o geógrafo precisa utilizar-se de recursos metodológicos que o impilam para a importância da concepção de processos que não tenham, necessariamente, os tradicionais “começo, meio e fim”, mas que os fenômenos e fatos geográficos que se apresentem em um dado momento sejam analisados como apenas uma fração visivelmente manifesta de processos contínuos de natureza física, ecológica e social inter-relacionados.

Reflexões metodológicas sobre palimpsestos regionais

Ante o exposto, fomos levados a dúvidas que, às vezes, passam despercebidas para o mais atento geógrafo, mas que nos traz empecilhos para o bom desenvolvimento de nossos trabalhos. Uma destas é o fato de como podermos entrelaçar espaço e tempo em uma única abordagem. Outra, colocada para provocar reflexões, refere-se ao fato de que é muito complicado integrar abordagens físicas e humanas, sem contar as de natureza ecológica, numa perspectiva única, dentro da atual Geografia. E é nesse ponto que consideramos o conceito de palimpsestos regionais, desenvolvendo algumas idéias básicas e (por que não?) fundamentais, listados a seguir:

I. paisagem é uma junção de objetos espaciais e temporais distintos, onde o passado e o presente se encontram e se apresentam em função da realidade atual; ao mesmo passo, elas são o resultado da configuração de duas histórias distintas, porém complementares: a história social ou humana e a história físico-ecológica de uma dada região;

II. falar sobre paisagem, e por conseqüência de espaço geográfico, denota em múltiplos processos evolutivos de configuração de elementos e formas em dinâmicas constantes de trocas de energias e matérias entre sistemas ambientais, levando ao encadeamento de vários outros processos entrelaçados, cujas compreensões servem para que se possa “construir” uma maneira mais hierárquica de se projetar a realidade sobre o espaço assentado em um substrato físico-ambiental;

III. paisagens e espaços podem se compreendidos como cenários, ou seja, um resumo da realidade, sem o qual não se podem desenvolver análises mais detalhadas sobre um dado território, aqui compreendido como um certo espaço delimitado. Ab’Sáber, (2003, p. 09) a considera a paisagem como uma herança em todos os sentidos (físicos, biológicos e humanos), o que reitera afirmações anteriores. É o ponto de partida para a compreensão integralizada do espaço total regional, que nada mais é que um fragmento de espaços territoriais com dimensões superiores (ao nível de estados, províncias, macro-regiões e/ou países);

IV. dos elementos constituintes das paisagens e espaços são destacados, via de regra, os rios, os mares, lagos, lagoas e lagunas; dunas, praias, manguezais, planícies de marés; prédios, casas, ruas e avenidas, cidades, plantações e áreas de pastoreio; além de formas de vegetação que se desenvolvem em áreas ligeiramente “homogêneas” ou mesmo bastante diferenciadas entre si. Daí se conclui que há uma identidade paisagística relacionada a cada local e/ou região. No entanto, dos elementos que constituem essas idiossincrasias geográficas se destacam os fatos geomorfológicos, responsáveis pela apreensão e diferenciação empírica dos “altos e baixos” da superfície terrestre para o assentamento das atividades humanas as mais heterogêneas possíveis;

Drew (2002, p. 123), por seu turno, tem uma concepção interessante sobre a Geomorfologia. Segundo aquele autor, ela é uma disciplina que aborda as questões de escalas de atuação dos eventos geomórficos, ou seja, aqueles responsáveis pela esculturação (modificação) da paisagem geomorfológica, em termos de espaço (abrangência geométrica) e tempo (abrangência processual histórica, que pode ser tanto físico-ecológica, quanto social). Outrossim, há destaque para as intervenções antrópicas inseridas, uma vez que “[...] as mudanças feitas pelo homem são antes locais que regionais e mais intensivas que extensivas [...]”.

Sobre esse quesito, Dias et. al. (2005, p. 3.082) afirmam que

[...] a configuração geomorfológica é uma das parcelas mais notáveis do espaço total regional, devendo ser compreendida em função, ao primeiro momento, de sua esculturação e estruturação litológicas e estratigráficas (conforme os ambientes geológicos de onde se encontram – e se assentam – tais formações); e em um segundo momento, de suas porções superficiais, representadas pelas variações pedológicas, estratos botânicos (cobertura vegetal), condicionantes (elementos) de tempo e clima, hidrografia e distribuição de vertentes e seus respectivos canais de escoamento de fluxos e áreas de estocagem hídrica, além da antropogênese, ou seja, dos elementos homem/sociedades enquanto agentes de modelagem e de transformação do meio em função de tecnologias viáveis para a apropriação (ou criação) de novos espaços, a fim de se estabelecer novos elementos a serem enquadrados em índices econômicos (valores) de uso e troca de terra ou solo [...].

Obviamente, tal afirmação acrescenta um pouco mais de valor ao agente antropogênico (o homem), com suas realidades culturais, técnicas, científicas e informacionais, conforme propunha Santos e Silveira (2002) como um sujeito capaz de modelar parcelas locais (e dependendo dos casos, em dimensões escalares maiores) dos ambientes geomorfológicos. Observa-se que o contexto que Dias et. al. (2005) não difere muito de Ab’Sáber (1969); contudo, houve esforços para se empreender um esforço de raciocínio para que se pudesse colocar as ações cumulativas antropogênicas em patamar de destaque.

Dessa forma, Ross (2000, p. 291) afirma que “[...] os sistemas ambientais naturais, face as intervenções humanas, apresentam maior ou menor fragilidade em função de suas características genéticas [...]”, o que significa dizer que, quanto maiores forem, em termos escalares, as intervenções humanas sobre o meio, em especial sobre a sua morfologia derivada dos aspectos geológicos, climato-botânicos e pedológicos, os mesmos têm respostas distintas às alterações impostas, o que pode vir a levar a maiores possibilidades de impactação ambiental, ou mesmo, segundo a probabilidade de inadequação ou inapropriação de usos de tecnologias adversas ao ambiente, de um processo pontual e crescente de degradações ambientais heterogêneas intercaladas.

E é nesse sentido multidiverso que se enquadram os palimpsestos, que são configurações sucessivas de sistemas ambientais sobre um mesmo espaço geográfico, observando, ao longo de tempos pré-estabelecidos[2] (técnicas de periodização), as variações que o meio passa a sofrer, seja em escalas regionais e com uma abrangência temporal de dezenas de milhares de anos, ou num sentido mais restrito, escala pontual, em que se processam eventuais modificações (rupturas) dos elementos bióticos e abióticos numa escala de tempo ligeiramente curta (de décadas a dias).

A esse aspecto soma-se um fator crucial: não podemos compreender os palimpsestos regionais (nas muitas acepções de região que se pode utilizar) sem se falar de sobreposições. São elas que norteiam melhor as reflexões sobre a conversão de geossistemas e ecossistemas em ambientes humanizados (espaços geográficos). Deve-se, ainda, tecer comentários sobre os tempos que se agregam a essa abordagem, pois se necessita, aprioristicamente, decidir a abrangência cronológica de eventos naturais e ecológicos (história físico-ecológica), além de humanos (histórias socioculturais ou socioeconômicas).

Àquela história físico-ecológica pode-se incluir processos que envolvam de eventos Plio-Pliocênicos (ou mesmo anteriores a esse tempo geológico) aos transcorridos na atualidade, passando por fatos naturais e ecológicos como flutuações climáticas e glácio-eustatismos; mudanças de níveis de base locais e regionais, além de alterações nas dinâmicas de sedimentação continentais e costeiras; formação de solos zonais, intrazonais e azonais, bem como a disposição de paleopavimentos detríticos (que informam a natureza genética (morfoclimática) de fragmentos de paisagens; retrogradações e progradações sucessivas de linhas de costa; morfogêneses de zonas costeiras; processos neotectônicos extinções naturais; expansão e/ou retração de ecossistemas, mosaicos de paisagens e domínios de natureza (biomas); quadros de distribuição das águas superficiais e de subsuperfície que concorreram para a (re) elaboração de formas e distribuição de materiais.

No que tange à sucessão de fatos históricos relacionados ao desenvolvimento das atividades humanas, convém mencionar que as mesmas estão ligadas ao reconhecimento da formação territorial dos espaços em evidência analítica, já que se mostra, nessa temática, uma sobreposição intensiva, que ao mesmo passo é extensiva, de elementos socioculturais e socioeconômicos que indicarão melhores formas de emprego de técnicas de periodização.

Ademais, devem ser elencadas todas e quaisquer alterações antropogênicas desenvolvidas num determinado espaço (para isso, convém que ele seja pré-estabelecido em termos cartográficos), bem como seus efeitos sobre os sistemas ambientais pré-existentes. Desmatamentos; inserção de espécies exógenas; instalação de núcleos habitacionais e/ou espaços destinados à produção (independente de que setores econômicos se atrelem); manifestações culturais, de inculturação e de sincretismos (religiosos, festivos, culinários, por exemplo); traços de sobreposição e/ou coexistência de elementos políticos e de sistemas econômicos diferentes (às vezes divergentes); e acesso das populações a bens, equipamentos e serviços que vislumbrem as melhorias da sua qualidade de vida são alguns dos quesitos exigidos para a compreensão das atividades humanas disseminadas pelos espaços totais regionais.

A isso se justapõem as redes socioeconômicas que se estabelecem entre espaços distintos, que os tornam complementares (relações “rurbanas”, intra e inter-regionais, agropecuaristas, silvícolas, agro-extrativistas, dentre inúmeras outras), sem esquecermos de relacionarmos, a todos e quaisquer elementos destacados, seus possíveis impactos positivos e negativos sobre a paisagem, sobre o espaço local e o total regional, bem como para a gestão do território, ao longo de diversas profundidades de tempo.

Isso acaba por mostrar que as relações de produção e apropriação de paisagens na tentativa de convertê-las em espaços podem vir a ser intensas em função de interesses externos à condição do indivíduo, antes sendo intrínsecas aos caracteres postulados pelo sistema de produção (Casseti, 1995). Ante o exposto, há uma tendência de aproveitamento desequilibrado dos elementos naturais e ecológicos disponíveis.

Quando se estabelece a “complexidade” transdisciplinar à abordagem geográfica, aqui manifestada pela idéia dos palimpsestos regionais, pode-se elaborar planejamentos bem mais completos e coerentes com a realidade-foco, com o detalhamento de processos e de dinâmicas físicas, ecológicas e humanas, possibilitando a elaboração de cenários coesos e coerentes sobre realidades possíveis em profundidades de tempo que podem ultrapassar a uma centena de anos.

Outrossim, a ausência de planejamentos sérios que visem a busca da sustentabilidade das atividades econômicas pode convergir para a exaustão dos recursos em profundidades diferentes de tempo, e isso apenas para uma questão, um objetivo: a obtenção de lucros, segregando espaços e margeando socialmente núcleos humanos de habitação (um grande contingente demográfico), criando ou mascarando relações de trabalho e produção com a finalidade de se atrelar novas variáveis valorativas (economicamente falando) aos seus postulados.



[1] Considera-se, aqui, o termo “sobrevivência” muito pouco funcional para explicar a gama de atitudes procedidas pelos seres humanos, em sociedades, no intuito de promoverem o repasse entre gerações de manifestações culturais, tradições, ideologias, hábitos e comportamentos sociais, políticos, econômicos, educacionais e, obviamente, ambientais. Todos esses traços levaram-nos a crer que o termo ideal para designar a supressão de caracteres puramente biológicos (sobrevivência) tende a ser substituído por outro socioeconomicamente mais abrangente, ao mesmo ponto que interagente: “subsistência”.

[2] Algo que deve ser destacado nas pesquisas geográficas é a dimensão temporal dos fatos espaciais. O tempo é um fator fundamental de/para análises, já que sua ação numa estrutura de continuum espaço-temporal é um indicativo da (re) produção espacial em diversas escalas, aliadas às características técnicas e científicas de uma dada época. É através dos processos de (re) configuração espacial (sempre segundo o binômio ora exposto) que se pode perceber a sucessão de formas e conteúdos que uma determinada parcela territorial pode adquirir ao longo do tempo (Santos, 2002), o que pode indicar quais são os agentes sociais atuantes em um certo território, além de um conjunto de fatores naturais (físicos) e ecossistêmicos se materializando e se desenvolvendo na paisagem.

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