Mesmo assim, os humanos são muito diferentes de outros animais, por mais difícil que seja definir a diferença. Uma cascata de eventos, alguns causados pela seleção natural e outros por simples acidentes, impulsionou a linhagem humana muito além do destino de ser apenas mais um macaco. Percorremos uma trilha evolutiva para nos tornarmos, talvez, o mais estranho florescer da ampla árvore da vida. E qual foi o motor inicial, a pedra deslocada que colocou essa movimentada cascata em movimento? Talvez a invenção das armas – evento que permitiu aos ancestrais humanos escapar da brutal tirania do macho alfa, dominante nas sociedades símias.
Biólogos não hesitam em vincular o sucesso dos humanos à sociabilidade. A capacidade de cooperar, de fazer indivíduos subordinarem seu interesse pessoal às necessidades do grupo, se encontra na origem das conquistas humanas. “Os humanos não são especiais devido ao tamanho de seu cérebro”, diz Kim Hill, antropóloga social da Arizona State University. “Não é por isso que conseguimos construir foguetes espaciais – nenhuma pessoa consegue. Temos foguetes porque 10 mil indivíduos cooperam para produzir a informação”.
Os dois principais traços que sustentam o sucesso evolutivo humano, na visão de Hill, são a incomum capacidade de cooperação entre pessoas sem laços familiares – em quase todas as outras espécies, apenas indivíduos de íntimo parentesco ajudam uns aos outros – e o aprendizado social, a habilidade de copiar e aprender a partir do que os outros estão fazendo. Uma rede social grande pode gerar conhecimento e adotar inovações com muito mais facilidade do que uma aglomeração de pequenos grupos hostis, constantemente em guerra entre si – o estado padrão da sociedade dos chimpanzés.
Se uma alteração no comportamento social foi o avanço crucial na evolução humana, a resposta a como os humanos se tornaram únicos está em explorar como as sociedades humanas começaram a se separar dos macacos. Paleoantropólogos costumam afirmar que as sociedades de chimpanzés são um substituto razoavelmente aceitável para a sociedade ancestral de macacos, que deu origem às linhagens de humanos e chimpanzés. Caçadores-coletores vivos podem espelhar aqueles da antiguidade, já que os humanos viveram dessa forma até as primeiras sociedades estáveis, há 15 mil anos.
A estrutura social das duas espécies não podia ser mais diferente. A sociedade dos chimpanzés consiste de uma hierarquia de machos, dominada pelo alfa e seus aliados, e uma hierarquia de fêmeas em seguida. O macho alfa contabiliza a maioria das paternidades, compartilhando outras com seus aliados. As fêmeas tentam se acasalar com todos os machos disponíveis, então cada um deles pode achar que é o pai – e poupar o filhote. Como uma sociedade similar a essa poderia originar a estrutura igualitária e basicamente monogâmica dos grupos caçadores-coletores? Uma nova e abrangente resposta foi desenvolvida por Bernard Chapais, da Universidade de Montreal, primatologista que passou 25 anos estudando sociedades de macacos. Recentemente, ele dedicou quatro anos à análise de literatura sobre antropologia social, buscando definir a transição entre a sociedade não-primata e os humanos. Seu livro, “Primeval Kinship” (Parentesco Primitivo, em tradução livre), foi publicado em 2008.
Chapais enxerga a transição como uma série de acidentes, cada um permitindo que a seleção natural explorasse novas oportunidades. Os primeiros humanos começaram a caminhar sobre duas pernas por parecer mais eficiente do que se locomover sobre as juntas das mãos, como os chimpanzés. Isso deixou as mãos livres e agora eles podiam gesticular ou construir ferramentas.
Na opinião de Chapais, foi uma ferramenta em formato de arma que tornou possível a sociedade humana. Entre os chimpanzés, os machos alfa são fisicamente dominantes e conseguem derrotar qualquer rival. Mas armas ajudam a equalizar o jogo e, quando todos os machos se armaram, o custo para monopolizar uma grande quantidade de fêmeas se tornou muito mais alto. Na sociedade hominídea incipiente, as fêmeas ficaram mais igualmente distribuídas entre os machos. A poligamia se tornou a regra geral, passando em seguida à monogamia.
Essa tendência levou ao surgimento de uma importante mudança no comportamento sexual: a substituição da promiscuidade dos macacos pela ligação em pares entre macho e fêmea. Com apenas uma parceira, na maior parte das vezes, o macho tinha um incentivo para protegê-la de outros machos e defender sua paternidade.
O elo em casais foi o principal evento que abriu caminho para a evolução hominídea, segundo Chapais. No nível fisiológico, ter um casal de pais permitiu que os filhos fossem dependentes por mais tempo, um requisito para o crescimento cerebral contínuo após o nascimento. Com isso, a seleção natural foi capaz de ampliar o volume do cérebro humano até ele ficar três vezes maior que o do chimpanzé.
No plano social, a presença de ambos os pais revelou a estrutura genealógica da família, que na sociedade dos chimpanzés fica pelo menos parcialmente oculta. Um chimpanzé sabe quem são sua mãe e seus irmãos, pois cresce com eles, mas não conhece seu pai ou os parentes de seu pai. Dessa forma, os grupos vizinhos aos quais as fêmeas se dispersam na puberdade, evitando o incesto, são vistos como conjuntos de machos estranhos – e tratados com incessante hostilidade.
Na linhagem hominídea incipiente, os machos conseguiam reconhecer suas irmãs e filhas nos grupos vizinhos. Eles também descobriam se o companheiro da filha ou da irmã compartilhava algum interesse genético comum pelo bem-estar dos filhos da fêmea. Os machos vizinhos deixaram de ser inimigos e passaram a ser parentes por afinidade.
A presença dos parentes da fêmea em grupos vizinhos se tornou, pela primeira vez, uma ponte entre eles – criando também uma estrutura social nova e mais complexa. Os grupos que trocavam fêmeas entre si aprenderam a cooperar, formando um conjunto que protegia seu território contra outras tribos. Mesmo tendo a cooperação como norma interna, as tribos travavam combates tão obstinadamente quanto os grupos de chimpanzés.
“Não existe uma pressão única que nos fez humanos”, disse Chapais numa entrevista. Ele vê a evolução humana como uma progressão sobre diversos acidentes. “A capacidade de reconhecer o parentesco paterno não foi algo selecionado, mas a partir do momento que eles tinham isso foi possível caminhar adiante e estabelecer relações pacíficas com outros grupos”, afirmou ele.
A nova estrutura social teria induzido o desenvolvimento de diferentes comportamentos sociais. “Pessoalmente, estou certo de que a cooperação é o que realmente diferencia humanos de macacos”, disse Michael Tomasello, psicólogo do desenvolvimento do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, na Alemanha. Um sistema de grupos cooperativos “proporciona o tipo de infraestrutura social que pode fazer as coisas funcionarem”, explicou ele.
Numa série de experimentos comparando bebês humanos e filhotes de chimpanzés, Tomasello mostrou que crianças muito jovens possuem uma compulsão por ajudar os outros. Uma dessas habilidades é o que ele chama de intencionalidade compartilhada, a capacidade de formar um plano com terceiros para atingir uma meta comum. As crianças, mas não os chimpanzés, apontam objetos para transmitir informações. Elas intuem as intenções dos outros pela direção de seu olhar e os ajudam a alcançar um objetivo.
Os primeiros humanos, deixando o abrigo ancestral dos macacos – nas florestas -- e se aventurando nas savanas, teriam enfrentado muitos predadores e uma violenta competição por comida. A cooperação pode ter sido imposta a eles como condição de existência. “Os humanos foram inseridos sob algum tipo de pressão coletiva para colaborar na busca por alimentos – tornando-se colaboradores por necessidade, de uma forma que não ocorreu com seus parentes primatas mais próximos”, escreve Tomasello num livro recente, “Why We Cooperate” (Por Que Cooperamos, em tradução livre).
Segundo ele, os humanos exibem a marca de sua intencionalidade compartilhada num aspecto pequeno, porém significativo: o branco de seus olhos, que é três vezes maior do que em qualquer outro primata – presumivelmente para ajudar os outros a acompanhar a direção do olhar. De fato, chimpanzés deduzem a direção do olhar pela posição da cabeça do outro indivíduo, mas os bebês o fazem observando os olhos.
Assim, se um biólogo marciano algum dia lhe perguntar o que tornou sua espécie a controladora deste planeta, aponte primeiro sua mãe e todos os parentes dela, em seguida o branco de seus olhos e apenas por último sua testa proeminente.