Entrevista concedida a Carmen Weingrill e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).
Publicada em julho de 1992.
"Aziz filho de Nacib; Nacib da família Ab'Sáber": foi assim, com esse estranho nome composto, que o escrivão do cartório da bucólica São Luís do Paraitinga, no alto vale do Paraíba em São Paulo registraria em seus livros a chegada ao mundo no dia 24 de outubro de 1924 do menino que mais tarde ficaria conhecido como Aziz Ab'Sáber o mais respeitado geomorfologista nascido em solo brasileiro, filho de um pequeno comerciante libanês e de dona Juventina, uma brasileira de ascendência portuguesa oriunda do sertão florestal. "Nasci no entremeio de um mar de morros", escreveu Aziz num poema da adolescência, em que já prenunciava a ciência que abraçaria e o estilo que costuma incendiar seu discurso.
Em tom poético e fartamente descritivo ele discorre sobre o espaço físico brasileiro como se fizesse referência às linhas da própria mão. Foi pelas frestas de um jaca de bambu, onde certa vez se acomodou com os irmãos para descer a serra em lombo de burro, na direção do mar paulista, que Aziz Ab'Sáber começou a admirar a riquíssima e variada paisagem brasileira. A família deixava Paraitinga para buscar melhor sorte lá pelas bandas de Caçapava. A vida era muito difícil, mas o pequeno Aziz dava conta de trocar o comércio, opção natural para um Ab'Sáber, por uma vaga no curso de Geografia e História da Universidade de São Paulo. A partir daí, começava a construir uma carreira universitária sólida e brilhante.
Aos poucos, Aziz, que, nos tempos de estudante, raramente tinha condições financeiras de viajar, foi conhecendo — e bem — os diferentes domínios da natureza brasileira: o cerrado, o Nordeste seco, o planalto das araucárias, a mata amazônica. Isso deu a ele uma visão tão absolutamente integrada do país, que lhe permite falar de sua terra e de sua gente como quem fala de coisas e pessoas muito íntimas. "Quando me dei por gente", conta Aziz a respeito de sua infância, "meu ambiente de vida era uma casa de esquina defronte ao mercado da rua Nova, de onde se ouvia o vozerio das gentes de todas as roças que vinham vender seu produto e comprar mercadorias." O tempo passou, a casa dos Ab'Sáber em São Luís do Paraitinga desapareceu, mas o filho de Nacib continua a ouvir o vozerio das gentes do Brasil, só que dessa vez reivindicando uma nação mais justa, pela qual ele também jamais deixou de clamar.
Como é que sua família veio parar no Brasil?
Meu pai era libanês e veio jovem para o Brasil buscar meu avô, um pequeno comerciante que estava morando em São Luís do Paraitinga (SP). Eles retornaram ao Líbano e, anos depois, em razão das lutas religiosas agressivas que já havia por lá e a conselho de minha avó, meu pai voltou para o Brasil. Aqui ele se casou com uma brasileira do sertão florestal, não do sertão seco. Minha mãe era muito ciumenta e nunca permitiu que se falasse árabe em casa. Portanto, apesar de eu ter um nome parecido com o de um xeque, não sei falar árabe.
Onde fez seus primeiros estudos?
Quando o terceiro dos três primeiros filhos completou seis anos, meu pai mudou-se para Caçapava (SP), uma cidade com mais infra-estrutura. Lá ele tinha uma lojinha e continuou fazendo o que a família sabia fazer. Nesse período, pela primeira vez, recebi uma educação formal. Indo para Caçapava, meu pai nos deu chance de seguir uma carreira. Fiz o curso primário no Grupo Escolar Rui Barbosa e aprendi a conviver com a competição. Pela primeira vez senti que as pessoas poderiam ser muito agressivas. Por ter um nome obviamente árabe, eu era chamado de "turquinho". Antes de entrar para a escola não havia tomado conhecimento desse tipo de coisa. Fiz o curso secundário no Ginásio Estadual de Caçapava. Aliás, todas as etapas de minha educação foram realizadas em escola pública.
Seu pai tinha formação escolar?
Não. Ele era de uma família que morava numa região de tradição agrícola, a leste de Beirute, onde toda a família se dedicava a atividades rurais. Meu pai foi o primeiro a se desgarrar, indo morar em Beirute. Ele tinha espírito aventureiro e gostava de viajar. Foi a Jerusalém sozinho quando moço e, depois, com apenas 15 anos, veio para o Brasil. Não teve condições de estudar. Mas, curioso, ele tinha uma característica que, penso, herdei dele: a vontade de conhecer mundos.
Mas ele se preocupava com a educação dos filhos, não?
O sonho dele é que os filhos pudessem estudar na França, um ambiente cultural com o qual seus primos tinham convivido. Quando ele veio para o Brasil, o navio parou em Gênova, na Itália, e não em Marselha. Isso foi uma decepção para ele, que queria conhecer um pedaço do solo francês. Meu pai sempre conviveu com a idéia de que eu, o mais velho, iria estudar na França.
Quando é que o senhor decidiu ir para a universidade?
Foi durante o curso secundário, influenciado por professores formados na primeira fase da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Alguns deles foram dar aula em Caçapava e eu pude sentir a diferença entre a formação desses professores e a dos mais velhos. Percebi a importância de uma boa formação, sobretudo na pessoa de um professor de história que estimo até hoje. Ele se chamava Hilton Friedericci, e ensinava uma história muito ligada à geografia humana, relacionada ao ambiente onde se desenvolviam os processos históricos. Em compensação, os professores de física, química e matemática não tinham boa formação ou não tinham didática. Os professores de história natural eram melhores. Gostava de física, apesar de considerar minha formação muito ruim. Parti então para o que eu gostava mais: história e geografia.
Com quantos anos o senhor entrou na faculdade?
Naquele tempo estava havendo uma mudança no ensino secundário. Eu havia feito apenas até o quinto ano, mas podia prestar o exame direto, sem fazer o Colégio Universitário, uma espécie de ponte entre o secundário e a universidade. Eu não tinha condições de enfrentar um exame cujos concorrentes tinham mais dois anos de estudos no Colégio Universitário, onde muitos professores eram da própria universidade ou ex-alunos recém-formados. Mas eu passei, acho que por causa de desenho, e com isso ganhei dois anos. Entrei na faculdade com 18 anos. Os exames eram muito difíceis. Para história e geografia, exigiam-se conhecimentos de história antiga e medieval, história contemporânea, história do Brasil, geografia do Brasil, geografia humana, geografia física, elementos de sociologia e desenho. Me saí mais ou menos bem em algumas dessas matérias. Não tinha conhecimento suficiente para ir bem em todas. Eu não viajava, estava circunscrito à área do Vale do Paraíba. Conhecia apenas Caçapava, Guaratinguetá e São Paulo. Fiz também uma viagem a Santos, quando vi o mar pela segunda vez. A primeira foi quando nos mudamos de São Luís do Paraitinga para Caçapava. Meu pai arrumou para descermos até Ubatuba, em despedida a São Luís. Era um período diferente. A serra, se descia a cavalo. Os meninos iam em jacas. Como eu era mais pesado do que meus dois irmãos, meu pai compensava a diferença de pesos com uma pedra. E chuva em cima até o fim da viagem! A estradinha era no meio da mata, um resto de estrada colonial em que se ia do planalto até o mar.
O senhor disse ter passado no exame por causa de desenho. O senhor tem habilidade nessa área?
Tenho. Ainda faço maquetes de relevo, blocos, diagramas. Mas não sou desenhista, sou apenas um esboçador de desenhos.
Parece que estudar é a coisa que o senhor sempre mais gostou de fazer, não?
Sim, eu não tinha outro objetivo na vida. Vim para São Paulo em 1940, sem ter feito o serviço militar. Mas tive que fazê-lo logo depois da preparação para os exames e entrei numa fase dura de treinamento. Pouco depois, em 41, tive uma infecção muito complicada. Se a minha família não tivesse vindo para São Paulo, eu teria morrido. Meus pais haviam perdido praticamente tudo antes de se mudarem, e o começo da vida da gente aqui foi um drama. Sou um sobrevivente desse tempo. Eu estava no primeiro ano da faculdade e fazia os primeiros meses do exército. Meu pessoal se instalou num bairro proletário, o Tatuapé, o único que meu pai conhecia. Foi um período muito difícil.
Não lhe parecia contraditório dedicar-se aos estudos quando havia tantas dificuldades financeiras na família?
Tive muitos problemas psicológicos por causa disso. Mas me dedicava profundamente aos estudos, pois sabia que a solução de muitos problemas da família dependia de mim. Eu adorava a universidade. Os primeiros cursos que fiz foram de altíssimo nível. Na área de humanas, estavam aqui os professores da missão francesa: Jean Gagé, de história, Pierre Monbeig, de geografia, entre outros. Brasileiro, havia o professor Aroldo de Azevedo, com quem mantive permanente contato. Cheguei a ser seu assistente e fiz toda minha carreira na disciplina de geografia do Brasil. Mas confesso que naquela época eu gostava mais de história. Ficava deslumbrado com as aulas de Jean Gagé. Ele era um medievalista famoso na Europa que veio para o Brasil como chefe da missão francesa em ciências humanas, substituindo Fernand Braudel. Braudel ficou pouco tempo; não tive a honra de acompanhar seus cursos. Só mais tarde é que assisti a algumas de suas conferências.
Mas foi à geografia que o senhor se dedicou. Qual a razão dessa escolha?
O preço dos livros de história e das assinaturas das revistas especializadas era um empecilho. Nas primeiras excursões ao campo, descobri que na geografia eu podia ler a paisagem e não precisava de livros. E também não havia bibliografia para os trabalhos que deveríamos fazer. Bastava ter saúde e boa vontade. Comecei então a ir ao campo e a fazer pequenas viagens. Como eu não tinha máquina fotográfica, aprendi a desenhar as paisagens que via.
Foi como estudante que o senhor começou a produzir cientificamente?
O primeiro trabalho de campo que fiz, sem orientação, foi sobre a geomorfologia da região do Jaraguá e arredores. Partindo de trem da Estação da Luz, em São Paulo, descrevi as colinas até chegar a Taipas e depois subir ao pico do Jaraguá. Descobri que havia outra coisa, além da história, que eu gostava de fazer e que era muito esportiva: viajar em trem de subúrbio, que naquela época era muito barato. Foi assim que minha carreira científica começou. Ainda como aluno, já fazia pesquisas e, por isso mesmo, acabei ficando um pouco marcado.
Como assim?
Naquele tempo, nem todos os professores eram pesquisadores natos. Quando iam ao campo, era para fazer uma mise-en-scène, pois não tinham muita capacidade de observação. Estudava-se a geografia da paisagem: a geometria das formas e a utilização humana do espaço. Ainda não se tinha qualquer senso ecológico. Em minhas excursões procurei examinar as paisagens como um todo, mas logo me especializei em geomorfologia. Um tanto precocemente, hoje reconheço.
Quais foram suas primeiras atividades depois de formado?
Entre 1944 — quando obtive o título de bacharel e me licenciei em geografia e história - e 1965, tentei conhecer o Brasil, pois não tinha dinheiro para viagens mais longas e não havia auxílio de nenhum tipo. Tive a sorte de me filiar à Associação dos Geógrafos Brasileiros, que se reunia uma vez por ano em pontos diversos do Brasil. A sociedade não se reunia em capitais, só em pequenas cidades e, durante essas reuniões, a gente aproveitava para fazer pesquisa de campo nos arredores. A sociedade foi fundamental na minha vida, porque, além de ter me permitido conhecer o Brasil, ainda me possibilitou publicar, em seu boletim, pequenas notas sobre as áreas que percorria.
A sociedade custeava suas despesas?
Custeava, porque eu era um aluno sem recursos. Muito cedo me tornei membro da diretoria e, quando o Boletim Paulista de Geografia foi criado, o professor Aroldo me convidou para participar de seu conselho editorial. Assim, pude compensar a falta de dinheiro. Eu não costumava freqüentar as rodas dos bares e restaurantes porque não podia dividir as despesas. Mas tive muita sorte com meus colegas. Um dia, o Miguel Costa Júnior sugeriu que fizéssemos um pool entre nós para conhecer um lugar distante. Com pouco dinheiro e com a ajuda da Fundação Brasil Central, fomos - o professor Pasquale Petrone, o Miguel Costa Júnior e eu - a Uberlândia. Lá, descobrimos um cidadão que estava levando mercadorias para a cidade de Aragarças (GO). O núcleo de Aragarças estava sendo construído pela Fundação Brasil Central na margem direita do rio Araguaia, em frente a uma cidadezinha muito pobre, que era Barra do Garças. Essa viagem foi fundamental na minha carreira, porque eu saí de uma região de morros, onde havia passado a infância e fui parar no Brasil Central, com chapadões intermináveis, cerrados e florestas de galeria. Pela primeira vez eu senti a diferença entre os domínios morfoclimáticos do Brasil. Comecei então a ler os trabalhos de viajantes como Saint-Hillaire e fiquei muito fixado no Brasil Central. Escrevi um longo trabalho sobre o sudoeste de Goiás, junto com o Miguel Costa Júnior. O trabalho, Contribuição para o estudo do sudoeste de Goiás, está publicado nos anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros.
Este foi seu primeiro trabalho?
Foi o meu primeiro trabalho de fôlego. Antes eu havia escrito sobre a geomorfologia do Jaraguá e suas vizinhanças. Todo o meu trabalho posterior decorreu dessa viagem ao Brasil Central e de uma outra que fiz mais tarde, pela Associação, ao Nordeste. Nessa segunda viagem, quando desci de Campina Grande (PB), após transpor o Planalto da Borborema, para a região de Patos (PB), vi pela primeira vez uma serra seca, cheia de cristas elaboradas em estruturas quartziticas mergulhantes. A partir da ponta dessa serra, entrei pela primeira vez no alto sertão, que é baixo, ondulado, com caatingas extensivas, rios intermitentes e uns morrotes bizarros, do tipo dos pães-de-açúcar, porém designados inselbergs pelos condicionantes semi-áridos do seu entorno. Compreendi imediatamente que estava diante do terceiro domínio da natureza brasileira. Durante muitos anos me dediquei a entender até onde iam aquelas depressões interplanálticas com montanhas e caatingas, solos de regiões secas, homens e sociedade sertaneja projetados pelo mundo da caatinga. A esse respeito, publiquei em Ciência Hoje o artigo "Os sertões - a originalidade da terra", um dos primeiros trabalhos de conjunto sobre a região dos sertões.
Quantos anos o senhor tinha quando fez esta primeira viagem?
A viagem para o sudoeste de Goiás foi em 1946, quando eu tinha 22 anos. A viagem ao Nordeste aconteceu mais tarde, em 1951 ou 1952. Na primeira fase de minha carreira, procurei entender a compartimentalização topográfica do Brasil. Já havia percebido três domínios integrados de natureza - o que hoje chamaríamos de domínios morfoclimáticos e fitogeográficos — e três domínios de geografia humana, com relações homem-ambiente muito rústicas e sofridas. Meu objetivo era entender a topografia geral do país, pois os mapas daquele tempo nada diziam. Falava-se do Espigão Mestre e a gente não sabia se se tratava de uma crista ou de um platô divisor. Adiante dessa região, que fica entre o Vale do São Francisco e a atual região de Brasília, havia o desconhecido. Sabia-se menos ainda sobre o espaço que se estendia entre essa região e a periferia da Amazônia. Eu me dedicava dia e noite a entender como era a compartimentação topográfica geral do Brasil, esse complexo sistema que envolve partes altas (montanhas, platôs) e rebaixamentos (depressões interplanáticas e sistemas de colinas e terraços). Essa foi a minha primeira preocupação, que deu substância à minha forma de perceber os espaços físicos e ecológicos.
O senhor tinha idéia de onde iria chegar com seus estudos?
Em 1956, estabeleci um roteiro de estudo de geomorfologia. Propus-me inicialmente a entender a compartimentalização e as formas que assumem os compartimentos, aquilo que se vê. Como geógrafo, eu tinha que ter olhos. E isso me foi ensinado, desde a primeira hora, pelos mestres franceses. Portanto, procurei desenvolver essa percepção, pois sem isso é impossível ser geógrafo. A partir de 1956 - por influência dos grandes geomorfologistas e geólogos do quaternário que vieram ao Brasil participar do XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado no Rio de Janeiro — comecei a me interessar pela estrutura superficial da paisagem, ou seja, passei a interpretá-la como documento do passado recente, da história física e ecológica da Terra. Foi aí que me aproximei da ecologia e da geoecologia. Passei a me interessar sobretudo pela fisiologia da paisagem, por aquilo que depende do clima. Queria ter uma noção dinâmica da fisiologia da paisagem, que integrasse todos os seus componentes: águas caindo, rochas se decompondo, solos se formando, enfim uma cadeia sutil de eventos. Fixei um tripé de estudos: compartimentalização e formas; estrutura superficial da paisagem; e dinâmica ou fisiologia da paisagem.
Como o senhor chegou à teoria dos refúgios?
Essa história começou quando entrei em contato com os grandes geógrafos alemães, belgas, franceses, poloneses e russos que vieram ao Congresso Internacional de Geografia realizado aqui no Brasil em 1956. De repente chegou ao Brasil um avião cheio de geógrafos, autores dos livros que eu lia. Foi uma festa! Eles não entendiam por que até durante o jantar eu procurava estar por perto deles. Aquela reunião me marcou. Até então eu não tinha tido oportunidade de ir a Europa e ver de perto o trabalho de geomorfologistas com formação muito superior a minha. Em 1957, quando Jean Tricart, um grande geógrafo de campo, voltou ao Brasil, eu o assessorei numa excursão a Salto, Jundiaí, Sorocaba e Campinas. Um dia paramos perto de um barranco onde havia uma ocorrência de stone lines (linhas de pedra) sobre terrenos mais antigos e, logo abaixo, terrenos cristalinos. Até então as linhas de pedra eram um enigma para nós brasileiros. Eu sabia da existência de bibliografia sobre aquelas linhas e sabia também que o que se dizia sobre elas não estava correto. Mas ninguém sabia explicá-las de outra forma com exatidão. O Tricart me disse então que aquelas linhas de pedra - que haviam dado tanto trabalho aos geógrafos, cada um interpretando-as a seu modo — na realidade deviam ser um remanescente de um chão pedregoso do passado. Poderia ser algo parecido — embora não se pudesse afirmar com certeza - com certas formações de pedras típicas do Nordeste brasileiro. Aquela área em que estávamos deveria, no passado, ter sido um chão pedregoso com caatingas ou cerrados, segundo a interpretação arguta de Tricart. Não precisou que ele dissesse mais nada: fiquei encantado com o que me dizia e me dediquei daí para frente a estudar as linhas de pedra..
Que relação há entre essas linhas e a teoria dos refúgios?
Já havia visto linhas de pedra dezenas de vezes no sul do país, mas não tinha condições de interpretá-las. Com o estímulo de Tricart, fixei-me na idéia de que as regiões com muitas linhas de pedra próximas umas das outras já teriam tido uma fisionomia semelhante à do Nordeste seco atual: com chão pedregoso e com áreas de solo sem pedras mas igualmente secas. Cheguei a fazer um mapa marcando todas as ocorrências de linhas de pedra. Depois estabeleci os corredores que deveriam ter sido secos e comparei com as informações sobre a existência de brejos no Nordeste. Concluí que todas as áreas onde ocorria chão pedregoso tinham sido na verdade caatingas — e não cerrados ou cerradinhos — e que as matas recuaram para ambientes iguais aos dos brejos do Nordeste. Por aproximações sucessivas, cheguei à conclusão de que muitas áreas tiveram caatingas extensivas e as matas ficaram reduzidas a pequenas manchas em alguns pontos, que chamei inicialmente de "redutos". Mais tarde outros adotaram a mesma expressão. Por causa dessa conclusão, sou considerado um dos autores da chamada teoria dos refúgios. O "jogo" que imaginei foi o seguinte: no momento em que as caatingas se expandiram, as florestas recuaram, mas não desapareceram, porque senão não teriam voltado. Esta foi a minha maior intuição.
Essa hipótese causou alguma reação imediata?
Lancei essa idéia numa conferência, durante a reunião da Associação dos Geógrafos em Alagoas, e depois em duas teses, uma de 1965 e outra de 1968. Mas, antes que eu publicasse minhas hipóteses, muita gente as copiou. Cheguei a tirar satisfação com uma pessoa e obtive a seguinte resposta: "Mas não está escrito!" Mas essa pessoa estava nas reuniões em que expus minhas idéias... Minha desforra é que copiaram a tipologia mas não souberam o que fazer com ela. O cientista não é um ser totalmente destituído de vaidades; ele as tem, sobretudo quando é roubado. Os biólogos, em particular, foram receptivos a essas idéias. Para eles era fundamental conhecer a história da vegetação brasileira e eu, em parte, lhes contava essa história.
O senhor sempre trabalhou sozinho?
Sim. Raramente fiz algum trabalho em colaboração, o que muita gente pode interpretar como egoísmo. Mas não tive outro jeito. Eu me diferenciei de meus colegas por ter uma certa facilidade para o trabalho de campo. Evidentemente, aqueles que seguiam uma carreira normal tiveram ciúmes. Quando escrevi o primeiro trabalho sobre o Jaraguá, meus amigos queriam publicá-lo numa revista de grêmio, mas alguns professores não aceitaram. Não porque tivessem críticas ao trabalho, mas porque não estava na "ordem do dia", porque eles não podiam avaliar se eu estava certo ou não. Com o trabalho sobre Goiás, aconteceu a mesma coisa: com base nas observações que havia feito, cheguei à conclusão de que a bacia do Paraná era um belo exemplo de cuestas concêntricas de frente externa, como era exemplificado no livro de Emmanuel De Martonne. Fiz então um longo trabalho de interpretação e o apresentei em Goiânia. Os geógrafos que conheciam a região sabiam que eu tinha razão, mas, ainda assim, resolveram contestar. Veja que maldade com quem está iniciando! Eu tinha apenas 22 anos, era jovem, caipira e provinciano. Alguns diziam que eu tinha excesso de imaginação. Sofri profundamente com essas críticas. Uma publicação naquele momento da minha vida era muito importante, e eu quase caí das nuvens quando o professor Aroldo de Azevedo disse que publicaria o meu trabalho. Ele o publicou na íntegra, com a bibliografia que usei para realizá-lo e que apresentava um visão diferente sobre a formação de bacias. Quando o trabalho saiu, o professor Aroldo recebeu uma carta do México que dizia: "Gostei muito do trabalho deste cidadão de nome complicado. Representa um esforço de leitura e de aplicação de conhecimentos como eu ainda não havia visto." Aí é que meus amigos mais próximos se deram conta de que as reações maldosas eram de pessoas enciumadas. A vida inteira essas pessoas ficaram reclamando do que eu fazia, e quase tudo o que fiz foi aceito com muita indiferença por elas.
A que o senhor atribui essa atitude?
Todos competiam para emergir. Alguns até já tinham emergido por força de seu próprio vigor intelectual, outros por seus padrinhos.
Como foi que o senhor entrou para o quadro de docentes da universidade?
Quando eu estava para terminar a pós-graduação, meu amigo Miguel Costa Júnior foi até o professor Kennech Kaster, que ensinava geologia histórica, e me fez um elogio que eu não merecia. O Kaster disse que já havia reparado em mim e pediu que eu fosse falar com ele. Quando soube disso, sumi. Ia na aula e saía antes de terminar só para não falar com ele. Eu não tinha jeito, como ainda não tenho, para pedir as coisas. Um dia na aula, ele botou a mão no meu ombro e disse para procurá-lo depois do exame. Aí não houve como fugir. Ele propôs que eu fosse contratado como assistente sênior. Mas, como não havia vaga, fui contratado como funcionário. Os outros eram uma espécie de professores associados. Como a situação em casa era difícil e eu não conseguia aulas no curso secundário, resolvi aceitar. Depois que fui "nomeado" na universidade, passei a tomar conta da biblioteca e a assistir às aulas do professor Kaster. O ambiente era extremamente competitivo. Havia os sem-caráter, que felizmente não fizeram carreira. O começo foi muito difícil, mas, apesar das dificuldades, a universidade tem suas compensações. Passei a ser "prático de laboratório" até fazer o doutorado e a livre-docência. Só depois de me tornar livre-docente é que deixei de ser funcionário. Como professor independente, não tive muito tempo para orientar teses e formar um grupo de trabalho. Não tive orientador, pois naquela época prevalecia o sistema de especialização. Nos anos de 1959 e 1960 estive em Porto Alegre dando aulas. Foram os dois únicos anos em que fiquei fora da USP e até nesse período tive problemas. Mas, enquanto estive lá, conheci melhor o planalto das araucárias e pude aprimorar meus estudos sobre os domínios fitogeográficos do Brasil.
O senhor esteve também em São José do Rio Preto, não?
Já quase no fim da minha carreira na USP, fui diretor do Instituto de Biociências e Ciências Exatas da UNESP em Rio Preto. Mas antes disso, descobri o quarto grande domínio da natureza brasileira: a floresta amazônica. Nessa época completei meu trabalho de síntese sobre domínios morfoclimáticos e fitogeográficos do Brasil, em que procurei integrar todos os meus estudos regionais. Nesse trabalho, imaginei que, existindo diferentes domínios — um muito úmido e outro seco — não poderia haver uma linha de separação nítida entre eles. Estudei as áreas de contato e de transição e pude verificar no campo a sua existência. Foi o melhor trabalho que fiz. Entre duas áreas A e B há combinações de espécies, com predomínio daquelas que conseguem assimilar melhor a área de tensão ecológica. No caso do contato entre três áreas A, B e C, existem componentes comuns às três, predominando também as espécies mais capazes de sobreviver. Mas, nesse caso, já começa a se esboçar algo que não é nem A nem B nem C. Forma-se uma nova região, um "tampão", entre A, B e C.
O senhor pode dar um exemplo?
A floresta de babaçu, entre a Amazônia e o Nordeste seco, ou a mata do cipó, entre a caatinga e a "mata fria", na Bahia. Esse foi meu principal trabalho, o que me lançou perante a comunidade biogeográfica. Até então os biólogos não tinham uma boa noção de espaços geológicos aplicada ao Brasil como um todo. Depois cruzei esses dados com os que tinha obtido sobre as ocorrências de linhas de pedra e encontrei evidências de que algumas dessas áreas tiveram, no período quaternário, caatingas e cerrados. Aí pude afirmar que o quadro da vegetação encontrado pelos colonizadores — matas atlânticas, cerrado, caatingas, mata amazônica, araucária, pradaria — não era o mesmo que existiu anteriormente, em tempos subatuais ou em alguns momentos do Pleistoceno superior. O arranjo que havia no passado era radicalmente outro, em decorrência de um episódio de fragmentação da tropicalidade.
Quando é que esse trabalho foi feito?
As pesquisas foram feitas entre 1958 e 1968. Mas continuo ainda hoje a elaborar esse trabalho e preciso escrever minhas conclusões mais recentes. Descobri, por exemplo, linhas de pedra espessas e contínuas na região do vale do rio Cristalino, a oeste do rio Araguaia, no sul do Pará, onde a Volkswagen tinha uma propriedade. Fiquei estarrecido quando as descobri sobre um solo muito raso e de floresta amazônica periférica. Deduzi, em primeiro lugar, que a Volkswagen iria fracassar no empreendimento, porque, quando fosse plantar naquele solo, as pedras poderiam ficar expostas. Em segundo lugar, deduzi que a área florestada resultou de uma floresta que recobriu, ao longo de poucos milênios, uma área que havia sido de caatinga. A caatinga foi expulsa, dando lugar a mata. Atualmente estou repensando essas idéias e tenho chegado a conclusões novas. Descobri linhas de pedra nos campos do Amapá que documentam que, no passado, eles devem ter sido caatingas, e que as linhas de pedra não são muito contínuas porque predomina o solo arenoso. Quando não há matriz resistente na pedra, é impossível a formação de chão pedregoso; forma-se um solo arenoso e um campestre de caatinga, que no Nordeste é chamado de "arisco", palavra que deriva da forma portuguesa antiga "areusco". São faces diferentes da caatinga. Os campos de Boa Vista, por exemplo, foram areuscos no passado. Ainda estou elaborando o significado do pedregal do vale do rio Cristalino em relação ao recuo das matas amazônicas para os refúgios.
A idéia que estou tendo é de que havia caatinga na região de Brasília e nessa área do Araguaia; cerrados e algumas manchas centrais de matas, ao longo da faixa equatorial. Os refúgios periféricos estariam nas frentes úmidas de chapadões, na borda dos platôs e nas vertentes médias dos Andes, até onde as brisas úmidas atlânticas pudessem alcançar. A conclusão me parece bastante verossímil. Se no sul do Pará — entre a serra de Gradaús e os chapadões do Maranhão, a leste do rio Tocantins - há cargas de material detrítico, constituído por linhas de pedra muito superficiais, é fácil deduzir que essa região foi mais seca no passado recente, aproximadamente entre 20 mil e 13 mil anos. E, se isso é verdade, os fragmentos de mata amazônica, que estavam muito recuados ou refugiados nas encostas úmidas, mais tarde serviriam como bancos genéticos para a reconstrução do grande contínuo florestal amazônico.
Qual a importância imediata dessas conclusões?
Do ponto de vista ambiental, isso mostra que o quadro encontrado pelos colonizadores, formado nos últimos 12 mil anos, se deu a partir dos refúgios. Foi a biodiversidade dos refúgios que fez com que — na medida em que o clima foi se tornando mais úmido na Amazônia e no Brasil tropical atlântico - as ilhas de umidade fossem se emendando e se aglutinando no espaço total da Amazônia e ao longo da faixa atlântica brasileira. Por isso defendo a implantação de grandes reservas de biodiversidade não só para o futuro da vida no território brasileiro, mas também para preservar mundialmente a biodiversidade. Isso por consciência própria, sem atendimento a pressões internacionais. Acho que é a partir dessa consciência que vão surgir novas propostas para a preservação da biodiversidade na Amazônia. O conhecimento das linhas de pedra por sua vez tem importância para prevenir impactos relacionados a escarificação ou sulcagem dos solos onde ocorrem.
O que há de peculiar no seu trabalho de geógrafo?
Na realidade, fui um grande viajante e um aprendiz de geógrafo. No início viajava para conhecer um pouco de tudo e, depois, já como geógrafo, para detalhar o conhecimento. No começo queria ter uma macrovisão do Brasil, mas, ao perceber que parte do passado recente estava na estrutura superficial da paisagem, tive que descer e olhar para os barrancos, atuando como geólogo de superfície. Eu ficava encantado, em 1956, ao ver os geógrafos estrangeiros interessando-se apenas pelos documentos dos solos superpostos vistos nos barrancos. Nessa época, geografia para mim era olhar a organização geral da paisagem e a projeção dos homens. Olhar barrancos era tarefa de geólogos. A integração que fiz — olhar o barranco e o espaço total — foi muito saudável e até mais útil para uma visão integrada do mundo físico e ecológico do que aquilo que aprendi com meus mestres eventuais.
Como foram suas relações com pesquisadores de outras áreas?
Meu relacionamento com a comunidade científica foi amplo. Os biólogos e os fitogeógrafos se interessaram muito pelas minhas idéias. Por outro lado, pude usufruir de seus conhecimentos biológicos para recauchutar minha geografia física, redirecionando-a para uma biogeografia válida. A melhor colaboração que tive veio do zoólogo Paulo Emílio Vanzolini, em 1970. Ele descobria espécies novas e sub-conjuntos diferentes de espécies no universo espacial amazônico, o mesmo que Juergen Haffer estava realizando em 1969 com agrupamentos regionais diferenciados de pássaros. Quando falei sobre áreas que haviam sido secas no passado, referindo-me especificamente ao Amapá, ele percebeu a importância dessas idéias para a zoogeografia.
Chamou-lhe a atenção sobretudo minha interpretação dos brejos como redutos de tropicalidade no domínio da caatinga, observação convergente que não é só minha. Se realmente houve refúgios distantes entre si durante o tempo em que a vegetação estava recuada, pode ter havido evolução genética distinta ou diferencial. Teria havido tempo suficiente para a subespeciação. O "relógio da evolução" tem funcionado diferentemente em áreas de refúgio muito separadas entre si. Quando os refúgios começaram a se expandir e se uniram, passou a haver convivência de associações faunísticas distintas, pois o que existia em um quadrante não existia necessariamente em outro. Essas conclusões são o ponto máximo da colaboração entre o meu trabalho e o de outros pesquisadores, principalmente botânicos e zoólogos. Desde então não mais deixei de colaborar com os biólogos, entre os quais Luiz Edmundo Magalhães, Antônio Lamberti, Afranio Fernandes, Maria Angélica Figueiredo e Benedito Vasconcelos Mendes.
Como a questão social entrou na sua vida?
No início da minha carreira, não tive oportunidade de me dedicar à geografia humana, pois muito precocemente me tornei um profissional de geografia física. Mas sempre fiz observações de geografia humana, necessárias para entender a organização real da paisagem e as modificações que lhe eram impostas pelo homem. Numa viagem que fiz quando jovem, percebi que os cerrados se intercalavam com remanescentes de cerradões e que aqueles eram frutos da degradação que o homem impunha ao cerradão. Em outros lugares de solos muito ruins, havia cerradinhos ralos no meio de capins nativos e árvores pequenas e esparsas. É óbvio que aquilo não era uma obra humana, mas da própria natureza. Com o tempo, passei então a me fixar nas conseqüências da atividade humana sobre a paisagem. Hoje, trabalho exatamente nessa linha, com mais experiência.
Como vê as modificações impostas pelo homem na Amazônia?
A Amazônia como um todo ainda está relativamente preservada. Mas a parte periférica, próxima ao cerrado, foi muito facilmente devastada. As pessoas saíam do cerrado e iam penetrando mato adentro, devassando florestas e fazendo experiências empíricas em solos pobres. Descobriam minérios e dominavam o espaço por processos cartoriais: muitos compravam pequenas áreas e as registravam como grandes propriedades. Foi o caos! Se examinarmos uma imagem de satélite de uma área crítica da Amazônia ocidental, veremos todos os tipos de supressão de florestas, com enormes conseqüências negativas para a biodiversidade regional. Examinei uma dessas imagens e fiz uma análise dos diferentes caminhos da devastação. Há uma estrada estadual ligando Belém, Marabá e Carajás, ao longo da qual há um processo contínuo de destruição. Numa distância de dois a cinco quilômetros além das margens dessa estrada não se vê qualquer sinal de floresta. Há também a ferrovia Carajás-São Luís — de 890 quilômetros, construída no governo Sarney —, em que se destruiu quase tudo entre cinco e 20 quilômetros, de ambos os lados da ferrovia. O governo permitiu que ocorressem barbaridades ecológicas durante sua construção, até mesmo o apossamento selvagem do espaço. Esta é a maior predação já feita na face da Terra, em tempo tão curto. O problema era ocupar a Amazônia de qualquer jeito. Outro fator de destruição são as estradas oblíquas e transversais, que conduzem a colonização em forma de "espinhelas de peixe", a partir de todos os tipos de caminhos. Elas resultam da venda de pequenos lotes para indivíduos que vivem em qualquer parte do país e pensam que vão fazer uma aventura formidável na Amazônia. Essas "espinhelas" são tantas que aquilo que era uma treliça no meio da mata se transforma em restos devassados de mata. Então é mentira se alguém diz que nessa área há 50% de matas preservadas, pois já ocorreu uma interconexão da devastação, prejudicando sobretudo as populações animais, para as quais já não existem nichos ecológicos.
Os outros fatores de degradação estão relacionados com os rios e igarapés. Ao longo do Braço Grande e Alto Capim, vê-se a devastação nas duas margens. Os mais pobres fizeram o mesmo ao longo dos igarapés: devastaram, venderam árvores, tentaram sobreviver. As imagens de satélite também revelam alguns "linhões" que dão acesso a grandes propriedades agropecuárias ilhadas no coração da floresta.
E quando surgiu sua preocupação com as populações nordestinas?
Senti o drama dos sertões já na primeira viagem que fiz ao Nordeste, no início dos anos 50. Embora tenha demorado a escrever sobre esse problema, ele sempre esteve presente na minha vida. Como eu me dedicava mais à geomorfologia e estava interessado em geografia da natureza, guardei minhas observações sobre as desigualdades sociais, a projeção da pobreza e a ecologia humana dos sertões para o momento em que pudesse, de fato, me dedicar a elas. Confesso que custei muito a usar meus conhecimentos científicos como instrumento de pressão política em favor de posturas melhores para o meu país e sua gente.
O senhor nunca pensou em se candidatar a algum cargo político?
Não tenho vocação para a política e não quero ser político. Quero apenas colaborar com as políticas públicas e com os políticos que merecem meu respeito. Depois que comecei a colaborar com o governo "paralelo" do Partido dos Trabalhadores, muita gente me confunde com uma espécie de candidato a político. De modo geral não gosto dos políticos brasileiros, independentemente do partido a que pertençam. Mas dou meu aval para as exceções e incluo, entre elas, Luís Inácio da Silva, o Lula, uma das inteligências mais rústicas e criativas do país. Sou um fiel servidor do governo "paralelo", particularmente assessorando o Lula. Mas minha participação política limita-se a fazer diagnósticos de situações e listar boas propostas para o redirecionamento das políticas públicas.
Que rumo o senhor acha que devem tomar as políticas públicas?
O regional e o setorial, integrados ao nacional, devem ser valorizados. Se não houver uma administração mais direta, não haverá solução para um país de dimensões continentais como o Brasil. A idéia que tenho do espaço brasileiro me faz pensar na necessidade de um bom método de abordagem e de muitas estratégias. Não adianta ter noção de espaço se não houver um conjunto de estratégias que viabilizem o que se julga correto. Mas para isso é preciso o apoio de todos os grupos. Com o projeto Floram, desenvolvido no Instituto de Estudos Avançados da USP, tenho tido oportunidade de pensar nesse tipo de estratégia.
O que é o projeto Floram e como o empresariado o tem recebido?
Trata-se de um projeto de reflorestamento diferencial para o Brasil, no sentido de que cada área requer um tipo específico de reflorestamento. O Nordeste seco, por exemplo, não pode ser uma área para produzir grandes massas de eucalipto para papel ou celulose, pois não tem condições climáticas nem hídricas para isso. De início, retirei do projeto a Amazônia, o Pantanal, o Nordeste seco e todas as áreas de solos agrícolas rentáveis do país, admitindo a possibilidade de um aproveitamento parcial de espaços agrários subaproveitados de áreas em geral mais desenvolvidas.
A Amazônia ficou de fora porque não tem sentido fazer reflorestamento numa região onde é preciso conservar o máximo de floresta em pé e descobrir modelos auto-sustentáveis para sua economia. Ainda assim, grandes áreas devastadas de sua periferia, como a faixa Carajás-São Luís, foram incluídas no projeto. O projeto Floram me deu acesso a áreas que estavam mais ou menos bloqueadas para debates. Os empresários não vinham a universidade porque a consideravam um antro da esquerda festiva e temiam que, ao revelar seus projetos, nós os combatêssemos. Através do projeto Floram, eles passaram a ter informações que desconheciam e a receber conselhos impensados. Os contatos tem sido muito úteis para associar desenvolvimento com proteção ecológica. Muitos empresários aprenderam a respeitar a universidade e a aceitar, em tese, nossas propostas.
Como vê a atividade do cientista num país como o Brasil?
Já ouvi dos artistas que eles vivem um grande drama porque o produto de seu trabalho é endereçado à burguesia, que não se preocupa com cultura e compra quadros apostando na sua valorização com o tempo. Com o cientista é pior! Para quem trabalha o cientista? Seu cliente é o país, a sociedade. Mas num país subdesenvolvido e num contexto de governos muito ruins que se sucedem, como é o caso brasileiro, os cientistas não têm como colocar no mercado o produto da sua atividade: as idéias, as descobertas, as propostas. Acho dramática a situação dos cientistas no Brasil. Julgo que o grande problema da ciência é que ela tem que ser permanentemente ética. Acho ainda que é fundamental para a ciência que as disciplinas não sejam aplicadas isoladamente. Não posso fazer uma proposta para a Amazônia com base apenas na geomorfologia da região. Qualquer conjunto de propostas para a região tem que se basear no conhecimento de toda a realidade: fatos físicos, ecológicos e sociais. Fatos e contingências políticas.
O senhor é otimista em relação a questão ambiental no Brasil?
Diante do quadro de devastação da Amazônia, não sou muito otimista. Há lideranças nos governos estaduais e empresários de postura imperial que defendem o modelo de ocupação dominante: devastação, multiplicação de estradas para valorização de suas glebas, expulsão de sem-terras, sem falar no fomento ao garimpo visando lucros e propiciando o contrabando de ouro e cassiterita. Alguns acham que se as florestas dos outros países já foram destruídas, por que não podemos fazer o que quisermos com a nossa? Pretende-se a total liberdade para qualquer tipo de supressão de florestas. Por outro lado, governadores e seus prepostos dão o seu aval à filosofia da devastação. Uma tristeza nacional! E no Acre até os juizes tentam absolver os assassinos de Chico Mendes. Nessas circunstâncias, cumpre-nos apenas lutar por boas idéias e propostas, ainda que não se possa acreditar em quase ninguém.